Blog da Licitar

Informações completas e atualizadas sobre a Licitar Digital e o segmento de compras públicas no Brasil.

Regulamentacoes-da-NLLCA

Regulamentações da NLLCA: um relevante processo do processo licitatório

No texto anterior, sugeri uma solução (simples, pretensamente elegante, e não completamente errada) para responder, sinteticamente, o que é necessário para aplicar a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021 – NLLCA). Propus, inspirado nos livros de gestão, uma dinâmica de três pilares: Pessoas (P); Processos (P); e Tecnologias (T). E me concentrei, naquele texto, no primeiro pilar, mais especificamente na pessoa-chave do processo licitatório para a Administração Pública, que é o agente de contratação.

É hora de tratar do segundo pilar: os processos. Uma vez que a licitação pública é, ela própria, um processo (e assim está corretamente caracterizada no artigo 17 da NLLCA), isso significa tratar dos processos do processo licitatório.

Pode parecer estranho, mas não há uma redundância. Isso porque a palavra “processo” é repetida ali com dois significados distintos. Ao referir “processo licitatório”, utiliza-se um conceito da Teoria Geral do Processo, compreendendo um conjunto de atos jurídicos ordenados para se chegar a uma decisão, a qual estabelece o direito aplicável a um caso concreto. No processo licitatório, tem-se atos (ou fases), como publicação do edital, propostas, habilitação, recurso etc. para, ao fim, adjudicar-se o objeto em favor de um licitante e de acordo com regras previamente estabelecidas. Já ao referir “processos”, como um dos pilares, utilizamos o termo para apontar diversas atividades genéricas que estruturaram os processos licitatórios. Portanto, processos que podem ser anteriores, transversais ou posteriores – mas sempre necessários – aos processos licitatórios realizados por cada um dos órgãos. Por exemplo, a alocação de recursos orçamentários, a criação de um organograma de recursos humanos para lidar com os desafios das contratações e da execução de contratos, a especificação de regras concretas, o desenvolvimento de sistemas, dentre outros, são processos do processo licitatório.

Dentre esses processos, exatamente dois dos mais relevantes são: as regulamentações e o desenvolvimento de sistemas. Por isso, tratarei individualmente de cada um. As regulamentações neste texto. O desenvolvimento de sistemas no próximo.

O que são as regulamentações da NLLCA?

Entender as regulamentações da NLLCA passa por entender a posição delas no ordenamento jurídico. E isso significa passar, mesmo que ligeiramente, na doutrina de um jurista austríaco chamado Hans Kelsen, o qual organizou e popularizou a hierarquia das normas jurídicas como a conhecemos hoje.

Sem ir muito aos pormenores, Kelsen propôs uma teoria na qual o Direito deveria ser “puro”, isso é, sem referências estranhas a ele, como o próprio ideal de Justiça. Ele baseou essa teoria em uma representação do Direito como um conjunto hierarquizado de normas jurídicas estruturadas na forma de uma pirâmide, originadas a partir de uma “norma fundamental”, estando no topo da pirâmide a Constituição. A partir dessa, surgem outras escalas de normas jurídicas, também hierarquizadas, como as leis, e, depois delas, os “regulamentos”.

Diversas são as representações gráficas possíveis para a “pirâmide de Kelsen”. Sem adentrar em controvérsias, uma de suas possíveis representações – pensando no direito brasileiro contemporâneo –, pode ser a seguinte:

É importante notar que, para a teoria funcionar, a noção de justiça das regras é substituída por uma noção de “validade”. Isso significa que, para uma norma ser válida, ela não pode conflitar com as normas de escalão superior. A norma de escalão inferior concretiza a norma de escalão superior. Assim, ela será mais concreta, disciplinando situações fáticas mais específicas, contanto, claro, que não entre em conflito com a superior hierárquica.

As regulamentações da NLLCA, portanto, são esses atos normativos de caráter infralegal. Elas possuem função administrativa, pois visam a garantir “fiel execução da lei” (art. 84, IV, da Constituição Federal). Portanto, são produzidas tipicamente pelo Poder Executivo, assumindo diversas formas, como Decretos, Resoluções, Instruções Normativas etc.

A hierarquia das normas nas licitações

No âmbito das licitações públicas, há regras jurídicas importantes em todos os referidos escalões hierárquicos.

Na escala constitucional, há algumas regras sobre licitações e contratos. Duas, porém, devem ser destacadas. A primeira é aquela do artigo 22, inciso XXVII, segundo a qual compete privativamente à União legislar “normas gerais” sobre licitações públicas. Isso significa, a contrario sensu, que existe uma competência dos demais entes federados de suplementar a legislação sobre licitações, contanto que não adentrem em normas gerais. Além dessa, há a regra que trata do dever constitucional de licitar (artigo 37, inciso XXI), a partir da qual percebe-se com clareza que as hipóteses de contratação direta – sem processo licitatório – devem ser entendidas como excepcionais.

Na escala legal, após a descentralização ocorrida nas últimas décadas, com diversas legislações em concomitância1, a Lei n. 14.133, de 2021 reunificou a legislação de contratações públicas, sendo a norma essencial sobre esse tema, pois revogou a Lei do Pregão e a Lei do RDC, além da antiga lei geral. Vale dizer que a Lei n. 13.303/2016 segue em vigor, embora válida apenas para as contratações das empresas estatais.

Por último – mas não menos importante (o que clichê aqui é válido, em especial por ser o tema desse artigo) –, tem-se a escala regulamentar. Aqui se enquadram todos os atos normativos infralegais produzidos tipicamente pelo Poder Executivo, e que dão operacionalidade à lei de licitações, quer onde esta faça remissão explícita à regulamentação, quer onde demande tacitamente, por lacuna, regras de concretização.

As regulamentações da NLLCA

As regulamentações não surgiram com a nova lei de licitações. Ao contrário, na Lei n. 8.666/1993 já era regulamentada em diversos pontos, a exemplo do Decreto n. 7.746/2012, que regulamentou a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, do Decreto n. 9.412/18, que regulamentou os novos valores de modalidades licitatórias, do Decreto n. 7.892/2013, que regulamentou o sistema de registro de preços, do Decreto n. 10.024/2019, que regulamentou o pregão, dentre outros.

Se é verdade que a prática da regulamentação já era usual no antigo marco jurídico, também é verdade que no novo marco jurídico – é dizer, com a publicação da NLLCA –, as regulamentações foram elevadas a um novo patamar. A nova lei demanda, em diversos dispositivos, essa regulamentação. Diversos mesmo. Podem se contar mais de 50 referências à necessidade de regulamentação.

Regulamentações, em geral, são positivas, uma vez que aumentam a segurança jurídica. Como não desejar que “a regra seja clara”, como referia o bordão de um famoso comentarista de arbitragem brasileiro? Ora, regras mais concretas e específicas diminuem as indeterminações e os subjetivismos, efetivando assim a legalidade e a impessoalidade, princípios muito importantes da Administração Pública.

Por outro lado, essa necessidade de regulamentações exigiu e vem exigindo dos agentes públicos um trabalho árduo de produção normativa em caráter infralegal. Para citar o exemplo federal, é digno de nota o brilhante trabalho realizado pela Secretaria de Gestão (SEGES), antes vinculada ao Ministério da Economia e atualmente ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, na edição de diversos atos normativos desde a publicação da lei. A lista com os atos normativos pode ser encontrada no seguinte link: https://www.gov.br/compras/pt-br/nllc/lista-de-atos-normativos-e-estagios-de-regulamentacao-da-lei-14133-de-2021.pdf. Além dos atos publicados, é possível verificar o estágio de regulamentação de outros atos (em elaboração, em consulta, enviado a CONJUR), na lista que recebe constante atualização.

A utilização das regulamentações federais por outros entes federados

Outra novidade da NLLCA é a possibilidade de utilização das regulamentações da União por outros entes federados, assim disposta no artigo 187: “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução desta Lei.”

Costumo brincar que esse dispositivo possui uma função “anti hipocrisia”. Isso porque, quem é familiarizado com licitações deve lembrar que, no marco normativo antigo, era muito comum que Estados e Municípios simplesmente realizassem um copia-e-cola de regulamentações federais. Um exemplo retumbante disso ocorreu com o Decreto n. 7.892/2013, do sistema de registro de preços, que era encontrado, nos seus exatos termos, em centenas de entes federados. A premissa, portanto, parece ser: ora, se houve uma boa regulamentação por parte da Administração Pública Federal, por que não a usar diretamente, mediante ato de opção, em vez de simplesmente copiar a mesma regulamentação como se fosse produzida no Estado ou no Município? Há, portanto, muito sentido na regra do artigo 187.

Mas há também cuidados necessários. Deve-se sempre lembrar que a estrutura da Administração Pública Federal é muito distinta da estrutura de outros entes federados, em especial pequenos Municípios. De tal modo, é sempre importante fazer uma leitura apropriada das regulamentações, a fim de verificar a possibilidade prática de sua eventual adoção. Muitas vezes, o caminho é mesmo a regulamentação própria.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *