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Compliance nas Licitações Públicas

Os objetivos escondidos da NLLC: a hora do compliance nas licitações e contratos públicos

Em nosso artigo anterior para este espaço, referimos o compliance nas licitações e contratos públicos, no contexto da governança e integridade, como uma das 5 mudanças mais relevantes da Lei nº 14.133/2021 (NLLC). Essa mudança pode ser encontrada a partir de uma interpretação do parágrafo único do artigo 11. Na verdade, mais do que uma mudança, trata-se de uma novidade da nova lei, uma vez que o texto legal ali inserido não possui qualquer parâmetro de comparação na Lei nº 8.666/1993. Mudança ou novidade, ela foi celebrada, com razão, pela doutrina. Conforme lembramos no artigo anterior, Marçal Justen Filho chegou a que, caso a lei de licitações tivesse apenas um dispositivo, este seria o seu escolhido. (1) Mas qual a natureza dessa novidade no contexto da lei? Como se chega a tal interpretação? Quais as consequências práticas dessa novidade?

Essas questões todas merecem uma reflexão, a qual é feita em complemento daquele artigo do mês passado.

Os objetivos explícitos do caput do artigo 11

Para entender a natureza do parágrafo único do artigo 11 da NLLC, é importante situar ele em seu contexto, transcrevendo o dispositivo:

Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:

I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;

II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;

III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;

IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.

Nota-se que o parágrafo único está associado ao artigo da lei que trata dos objetivos (ou finalidades) do processo licitatório. Esses objetivos estão agrupados em uma “lista” de quatro incisos. Nesses incisos, podem ser lidos 8 objetivos.

Três desses oito objetivos são uma repetição, com pequenas variações de texto, das três finalidades que já se encontravam no artigo 3º lei anterior, quais sejam:

1. Selecionar a proposta mais vantajosa (inciso I)
2. Assegurar tratamento isonômico (inciso II)
3. Incentivar o desenvolvimento nacional sustentável (inciso IV)

Os outros cinco objetivos foram acrescentados, e não possuem um equivalente – ao menos explícito – na lei antiga. São eles:

4. Assegurar a justa competição (inciso II)
5. Evitar contratações com sobrepreço (inciso III)
6. Evitar contratações com preços manifestamente inexequíveis (inciso III)
7. Evitar superfaturamento (inciso III)
8. Incentivar a inovação (inciso IV)

A técnica de redação do artigo dá a entender que os objetivos da lei são esses oito objetivos, e somente esses oito, citados no elenco dos quatro incisos que dão sentido ao caput. Porém, numa leitura atenta ao referido parágrafo único do artigo 11, percebe-se claramente que, além de realçar os objetivos listado no caput, há, ali outros objetivos do processo licitatório. Eles estão ali como que escondidos, esperando para serem desvelados pelo intérprete e operados pelo gestor público.

Os objetivos escondidos do parágrafo único do artigo 11

O citado parágrafo único do artigo 11 da NLLC contém muitos comandos. Para atentar a todos eles, recomenda-se, didaticamente, ler o dispositivo pausadamente, dividindo-o em partes. A partir dessa metodologia, cada um desses comandos pode ser encontrado. São três comandos, os quais estão listados abaixo.

Primeiro, o dispositivo estabelece o comando de que a governança das contratações é de responsabilidade da alta administração.

Segundo, o dispositivo estabelece o comando de que a alta administração da instituição, no exercício de governança, implemente processos e estruturas (incluindo gestão de riscos e controles internos) para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e contratos.

Terceiro, o dispositivo estabelece o comando de que os processos e estruturas implementados busquem alcançar os objetivos referidos no caput do artigo.

Ocorre que as determinações não param aqui. Lido atentamente, percebe-se que os processos e estruturas a serem implementados não visam apenas ao alcance dos objetivos do caput. Além dos objetivos do caput, são citados, no parágrafo, outros três objetivos da governança nas contratações:

9. Promover um ambiente íntegro e confiável (parágrafo único)
10. Assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias (parágrafo único)
11. Promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações (parágrafo único)

A técnica de redação pode ser estranha. Afinal, é difícil entender por que esses objetivos não estão também elencados, todos eles, no caput, mas em seu parágrafo único, de certa forma “escondidos” junto a determinações sobre a governança nas contratações.

Porém, independentemente da técnica de redação escolhida, a sua existência é inegável. E, passados mais de 3 anos de vigência da NLLC, é necessário que os órgãos públicos passem a deslocar sua atenção para esses objetivos escondidos, que remetem à governança e integridade nas contratações públicas.

Os objetivos escondidos em uma só palavra: a hora do compliance nas licitações e contratos públicos

Em um artigo publicado no ano passado na Revista Brasileira de Políticas Públicas (2), eu e dois colegas refletimos sobre o tema do compliance no setor público. Compliance refere-se a práticas que garantem a ética e o cumprimento das leis. Notamos que esse assunto é frequentemente ignorado por gestores públicos em todas as esferas do governo brasileiro, apesar de sua grande importância.

Mesmo a nível federal, as ações para promover o compliance têm sido fracas. Há alguns decretos, como os de números 10.756 e 10.795 de 2021, mas eles não impõem penalidades para quem não cumpre as normas. Infelizmente, muitos gestores veem o compliance como um obstáculo ao seu trabalho, porque não querem limitar seu poder.

Por que mencionar compliance se ele não é citado explicitamente no referido parágrafo único? A resposta está na presença do que sugerimos, naquele artigo, tratar-se de dois modelos de compliance. O primeiro é o que conhecemos, focado em integridade (valores éticos) e conformidade (cumprimento de leis), como estabelecido pela Lei Anticorrupção de 2013. Esse é o modelo mais comum, encontrado em cursos e manuais sobre o tema.

O segundo modelo que propomos sugere que, além da integridade e da conformidade, o compliance deve se conectar a um terceiro aspecto: os objetivos sociais de uma instituição. Isso significa que os mecanismos de controle interno funcionam melhor quando estão ligados a finalidades específicas. A ideia é criar um sistema que relacione a administração pública ao interesse da sociedade, especialmente em alinhamento com os objetivos da Agenda 2030, que busca melhorar as condições de vida em todo o mundo. Ora, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações parecem, de fato, combinar com este segundo modelo – mais abrangente! – de compliance.

Portanto, a NLLC, em sua redação – se olharmos sua parte escondida – parece ajudar a interpretação no sentido da obrigatoriedade da realização de um compliance que envolva integridade, conformidade e finalidade. E nós, vamos ajudar essa interpretação?

Autor Mártin Perius Haeberlin

 

(1) Referência à frase: “Se eu fosse dizer para vocês… olha, não precisa mais nada, eu quero ter uma lei de licitações com um dispositivo, seria esse. Esse dispositivo é essencial.” JUSTEN FILHO, Marçal. Nova Lei de Licitações e seus Aspectos Positivos. Palestra IAP. Youtube, 05.06.2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mKt1kTLuObM>. Acesso em: 15 set. 2024.

2 HAEBERLIN, Mártin; PASQUALINI, Alexandre; CRUSIUS, Tarsila Rorato. Compliance 2030: as três dimensões de um novo paradigma do compliance e o seu desenho teórico, normativo e operacional para o setor público. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 13, n. 2. p. 443-465, 2023.

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