Muitas vezes, nas mais diversas situações, já me fizeram variações da seguinte pergunta: “Professor, o que eu preciso fazer, em poucas palavras, para entender/aplicar a Nova Lei de Licitações?” Para esta pergunta, cujo intento subjacente é fazer com que eu reduza em poucas palavras não apenas os quase 30 anos de tramitação do projeto, mas o seu resultado consistente em 194 artigos com suas centenas de incisos, parágrafos e alíneas, eu costumava responder com – ou, por educação, apenas lembrar – uma frase atribuída a Henry Louis Mencken: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.” Mas, de tanto insistirem, resolvi criar uma solução. Acho que ela não é “completamente errada”. Tenho certeza de que ela é simples e, de certo modo, elegante. Isso porque ela não contém “poucas palavras”. Ela contém apenas três letras (duas, na verdade, posto que uma se repete): P – P – T.
Sim. Da leitura de livros sobre Gestão e Administração de Empresas, tomei essa inspiração reducionista. Ainda que incompleta, ela ajuda a entender que o início do entendimento e da aplicação da Nova Lei de Licitações passa pela dinâmica de três pilares: Pessoas (P); Processos (P); e Tecnologias (T).
Deixarei a questão dos processos e das tecnologias para outros textos. Hoje, me concentro no primeiro “P”: pessoas. Mais particularmente, em uma pessoa. Isso porque, embora a lei trabalhe com o princípio da segregação de funções (artigo 5º), o que implica multidisciplinariedade, há um lugar de destaque na lei quando se trata das “pessoas”. Se usamos a expressão “peça-chave” para se referir a algo que é essencial, fundamental, principal, prioritário, parece adequado adotarmos, quando lidamos com alguém essencial, e não algo essencial, uma outra expressão, que consta do subtítulo deste texto: “pessoa-chave”. Pois na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021 – NLLCA), há uma pessoa-chave, ao menos do ponto de vista da Administração Pública. Essa pessoa-chave é o agente de contratação.
Quem é o agente de contratação?
O artigo 7º da NLLCA inaugura o capítulo sobre os “Agente Públicos” estabelecendo regras gerais para as pessoas da Administração Pública que desempenham funções relativas à execução da lei. No artigo seguinte, lê-se especificamente sobre o agente de contratação:
Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
Inicialmente, constata-se que esse agente possui atribuições relacionadas à etapa externa das licitações públicas, a qual inicia com a divulgação do edital e passa pela fase de apresentação de propostas e lances, seguida do seu respectivo julgamento, de habilitação, pela fase recursal, até chegar à fase de homologação. Caberá ao agente de contratação realizar atividades de todas essas fases da etapa externa, tais como as exemplificadas no próprio texto legal (impulsionamento, decisão, acompanhamento de trâmites etc.).
Ao se verificar as atividades do agente de contratação, percebe-se nitidamente que a inspiração do legislador para a sua criação foi a figura do pregoeiro, inserida no direito brasileiro a partir da Lei nº 10.520/2002. De fato, o agente de licitação funciona como um pregoeiro para todas as modalidades licitatórias. Juridicamente, porém, é apenas na modalidade pregão que ele segue sendo designado “pregoeiro” propriamente, conforme dispõe o § 5º do art. 8º:
Art. 8º (…).
- 5º Em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro.
A condução das atividades do processo licitatório por uma pessoa singular, em vez de um órgão colegiado, é uma resposta interessante para a maior parte dos processos licitatórios, sendo salutar, portanto, a modificação legislativa. Permite-se, com ela, maior celeridade aos processos, além das vantagens naturais de uma responsabilidade individual na condução dos trabalhos relativos à fase externa.
Quem não é o agente de contratação?
A existência de uma pessoa-chave no processo licitatório não significa barateamento da segregação de funções e da gestão por competências. Ainda que a escassez de recursos humanos com expertise sobre contratações públicas, notadamente em pequenos Municípios, seja notória, é importante compreender que o agente de contratação não deve exercer todas as atividades do processo licitatório desde a sua concepção até o fim da execução do contrato.
Nesse sentido, a lei aponta para a necessidade de um regulamento que trate do desempenho de suas funções, consoante se lê do § 3º:
Art. 8º (…).
- 3º As regras relativas à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos de que trata esta Lei serão estabelecidas em regulamento, e deverá ser prevista a possibilidade de eles contarem com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno para o desempenho das funções essenciais à execução do disposto nesta Lei.
Esse dispositivo é relevante para demonstrar quem não é o agente de contratação. Ele não é um “faz-tudo” das licitações e contratos. Não é a pessoa responsável por atos iniciais de planejamento, como o PCA, ou da fase preparatória (DFD, ETP, pesquisa de preços, TR, minutas de edital e contrato etc.), ainda que possa colaborar para sua criação, conforme regulamento. Assim como não é, nem deve ser, o fiscal de contrato.
Nesse sentido, talvez o nome dado a esse agente à época do projeto de lei fosse mais esclarecedor: ele é um “agente de licitação”, não do contrato e sua execução.
Da pessoa às pessoas
Embora a regra geral, da lei, seja a condução da etapa externa pela figura singular do agente de contratação, a lei prevê, e não poderia ser diferente, situações nas quais o agente recebe colaborações, consoante se pode observar dos §§ 1º, 2º e 4º da lei, in verbis:
Art. 8º (…).
- 1º O agente de contratação será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe.
- 2º Em licitação que envolva bens ou serviços especiais, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 7º desta Lei, o agente de contratação poderá ser substituído por comissão de contratação formada por, no mínimo, 3 (três) membros, que responderão solidariamente por todos os atos praticados pela comissão, ressalvado o membro que expressar posição individual divergente fundamentada e registrada em ata lavrada na reunião em que houver sido tomada a decisão.
(…)
- 4º Em licitação que envolva bens ou serviços especiais cujo objeto não seja rotineiramente contratado pela Administração, poderá ser contratado, por prazo determinado, serviço de empresa ou de profissional especializado para assessorar os agentes públicos responsáveis pela condução da licitação.
Da leitura do parágrafo, percebe-se que as três situações previstas de colaboração, seguindo a ordem dos respectivos parágrafos citados, referem-se a: auxílio (demanda a equipe de apoio, ainda que mantida responsabilidade individual, exceto nos casos de indução em erro); colegialidade (formação de Comissão, nos moldes da revogada Lei n. 8.666/1993, para os casos de bens e serviços especiais, situação na qual o colegiado possui responsabilidade solidária pelos atos praticados, permitida a ressalva individual de posição); e contratação externa (possibilidade de terceiros externos à Administração realizarem as atividades do agente de contratação, em casos de objetos que não sejam rotineiros e compreendem, portanto, uma forma de “singularidade”).
Obrigatoriedade de agente de licitação pertencer ao quadro permanente: é constitucional?
Por fim, mesmo sem a pretensão de esgotar o tema, é importante citar uma questão polêmica na lei sobre o agente de contratação, qual seja a constitucionalidade da determinação, constante no já citado caput do artigo 8º, de que esse agente pertença aos quadros permanentes da Administração Pública.
Sabe-se que alguns Municípios brasileiros, em suas respectivas regulamentações, previram a possibilidade de exercício das funções do agente por pessoas externas aos quadros permanentes, por meio de cargos em comissão ou mesmo contratações externas fora das situações singulares. Essas regulamentações têm sido alvo de impugnação por órgãos de controle.
Em nossa interpretação, a determinação da lei é inconstitucional. Isso por dois fundamentos, que devem ser lidos em conjunto: (i) não se trata, aqui, de “normas gerais” sobre licitações, em relação às quais há competência legislativa privativa da União Federal (art. 22, XXVII, da CF); e (ii) a determinação ofende a autonomia administrativa dos entendes subnacionais (art. 18 da CF).
Sem deixar de externar esse entendimento pessoal, observa-se que, até o Supremo Tribunal Federal consolidar um entendimento sobre o tema, mostra-se temerária a realização de nomeação em colisão com a referida regra.