É curioso pensar que a intenção de reforma na Lei nº 8.666/1993 tenha surgido apenas dois anos após a sua publicação, com o PL 1.292/1995. Também é curioso pensar que essa intenção de reforma ficou um tanto adormecida por mais de vinte anos, até 2017, quando o projeto de origem no Senado (PLS nº 559/2013) foi encaminhado para análise da Câmara dos Deputados, sendo autuado como PL nº 6.814/2017 e, posteriormente, apensado àquele primeiro, com texto aprovado pela Câmara em 2018. Parafraseando o título do conhecido livro de Daniel Kahnemann sobre as duas formas de pensar, pode-se afirmar que, na reforma da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, o Congresso Nacional foi rápido (no propósito) e devagar (na execução).
Em parte, essa demora na reforma da lei pode ser atribuída a vozes contrárias, segundo as quais não haveria algo disruptivo na mudança, sendo mais produtivo alterar pontualmente a lei antiga, mantendo-a no ordenamento jurídico. Isso pode ser uma verdade para os primeiros textos do projeto de lei. Está longe de ser uma verdade para os textos construídos a partir de 2017 e, notadamente, aquele aprovado, sancionado, promulgado e publicado sob o n. 14.133, em 1º de abril de 2021 (NLLC – Nova Lei de Licitações e Contratos).
Apenas a título de ilustração, é possível fazer uma rápida lista com 30 tópicos nos quais podem ser verificadas mudanças significativas: (i) agente de contratação; (ii) bicontratação; (iii) Building Information Modeling; (iv) critérios de desempate; (v) critérios de julgamento; (vi) contratação direta: hipóteses e formalização; (vii) defesa do agente público; (viii) definições; (ix) eficiência e remuneração variável; (x) etapa externa com modelo “proposta-habilitação” e fase recursal única; (xi) fase preparatória disciplinada; (xii) finalidades; (xiii) governança e integridade; (xiv) instrumentos auxiliares; (xv) lances; (xvi) matriz de riscos; (xvii) marca: adoção e vedação; (xviii) meios alternativos de solução de conflitos; (xix) modalidades; (xx) modos de disputa; (xxi) notas de desempenho; (xxii) PNCP e forma eletrônica; (xxiii) prioridade em licenciamentos; (xxiv) prazos; (xv) princípios; (xxvi) publicidade diferida; (xxvii) reajuste e repactuação; (xxviii) regimes de contratação; (xxix) sigilo do valor de referência; (xxx) reunificação legislativa.
Com tantas mudanças significativas, é difícil fazer um ranking elencando as principais. Mas a tarefa, mais do que difícil, é sedutora. É divertido fazer rankings (ex.: melhores jogadores, times, bandas, filmes, músicas etc.) e discutir sobre eles. Claro que há algo de subjetivo nessa tarefa. É justamente a subjetividade que atrai. Por isso, faço abaixo o meu ranking das 5 mudanças mais relevantes na Nova Lei de Licitações e Contratos, em ordem de relevância. Trata-se do meu ranking e ordem; e do meu convite para quem lê este texto faça o seu.
PNCP e forma eletrônica na Nova Lei de Licitações e Contratos
Entendo que a maior novidade da Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC) é a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). Poucos sabem, mas esse sistema surgiu a partir de sugestões da Confederação Nacional de Municípios (CNM) durante a tramitação do Projeto de Lei 6.814/2017. O relator do projeto na Câmara dos Deputados solicitou à CNM sua opinião sobre o PL. Em resposta, a CNM enviou propostas de alteração, dentre as quais a criação de um Sistema Nacional Integrado. O Relator acatou essas sugestões (1) e, depois, a Consultoria Legislativa da Câmara propôs a adição de um Capítulo específico sobre o PNCP, com a nova redação no artigo 174.
O PNCP tem duas funções principais: (i) divulgar, de forma centralizada e obrigatória, atos relacionados às contratações públicas; e (ii) possibilitar, de forma opcional, a realização de contratações através do Portal.
Não há perspectiva sobre quando a segunda função estará disponível. Em relação à primeira, o site do PNCP encontra-se ativo desde 2021 (2), permitindo a consulta e o filtro de milhares de documentos e informações sobre contratações públicas no Brasil. O Portal está constantemente sendo atualizado para garantir maior transparência e eficiência nas contratações públicas.
Fase preparatória: planejamento
A fase preparatória é uma única fase da etapa interna da licitação. Ainda que já existisse no marco regulatório anterior, ganhou uma nova importância na lei, com regras objetivas que concretizam o “princípio do planejamento”.
Nessa fase, é realizada a instrução do processo, com a requisição da demanda, a qual deve estar alinhada com o plano de contratações e as leis orçamentárias, além de incluir considerações técnicas, mercadológicas e de gestão. Costumo dizer que é nesta fase em que o destino de uma licitação é selado. O seu sucesso depende da correção e qualidade dos documentos nela gerados, dentre os quais: estudo técnico preliminar, análise de risco, estimativa de preço, bem como diversas definições de objeto e execução na confecção de peças (edital, minuta do contrato, termo de referência etc.).
Alguns desses pontos mereceram atenção especial do legislador. O estudo técnico preliminar ganhou contornos claros como um mapeamento de alternativas de solução para problemas da Administração Pública e sua viabilidade. Na estimativa de preço, elencaram-se meios de caracterização do valor de mercado, ressalvando flutuações possíveis relacionadas a quantidades compradas e peculiaridades locais.
Governança e Integridade na Nova Lei de Licitações e Contratos
A Lei nº 8.666/1993 consagrava três finalidades ao processo licitatório: tratamento isonômico, contratação da proposta mais vantajosa e desenvolvimento nacional sustentável. Essas finalidades são repetidas na Nova Lei de Licitações e Contratos, que acrescenta, nos incisos do art. 11, outras cinco finalidades: assegurar justa competição; evitar contratações com sobrepreço; evitar contratações com preços manifestamente inexequíveis; evitar o superfaturamento; e incentivar a inovação.
No parágrafo único deste art. 11, a Nova Lei de Licitações e Contratos trouxe possivelmente a maior novidade em relação às finalidades do processo licitatório. Ali, determina-se a estruturação de governança e a implementação de processos e estruturas de gestão de risco e controles para promoção de um ambiente íntegro e confiável. Pode-se dizer que Marçal Justen Filho tenha usado algum exagero retórico ao afirmar, em uma palestra: “Se eu fosse dizer para vocês… olha, não precisa mais nada, eu quero ter uma lei de licitações com um dispositivo, seria esse. Esse dispositivo é essencial.” (3) A despeito do eventual exagero, é um dispositivo crucial, ainda não explorado, com uma clara recomendação de realização do compliance para o setor público.
Instrumentos auxiliares
A Nova Lei de Licitações e Contratos (NLL) disciplinou “instrumentos auxiliares” que visam a tornar os processos de compras e contratações mais claros e eficientes. A maioria deles já existiam, mas eram pouco usados ou precisavam de mais regras. São eles:
Credenciamento. A Administração Pública faz um chamamento público para selecionar pessoas ou empresas aptas a fornecer bens ou serviços. Normalmente, esses valores já são pré-definidos e a contratação pode ocorrer por inexigibilidade.
Pré-qualificação: Antes da licitação, a Administração pode fazer uma seleção prévia de interessados. Isso permite restringir a participação na licitação a essas pessoas ou empresas que já foram previamente habilitadas.
Procedimento de Manifestação de Interesse: A Administração pode pedir à iniciativa privada estudos e projetos sobre soluções inovadoras para problemas de interesse público. Depois, esses estudos podem ser usados para realizar uma licitação para a execução das propostas.
Sistema de Registro de Preços: Este sistema, já bastante conhecido, foi aprimorado pela Nova Lei de Licitações e Contratos, especialmente no que diz respeito à contratação de órgãos que não participaram do processo inicial (chamadas de “caronas”). O objetivo é melhorar a economia de escala.
Registro Cadastral: É um cadastro unificado de empresas e pessoas interessadas em participar de licitações, disponível no PNCP. O sistema avaliará o desempenho dos licitantes e registrará as penalidades aplicadas.
Etapa externa com modelo “proposta-habilitação” e fase recursal única
A Nova Lei de Licitações e Contratos prevê as seguintes fases do processo licitatório (art. 17): (i) preparatória; (ii) divulgação do edital da licitação; (iii) apresentação de propostas e lances, quando for o caso; (iv) julgamento; (v) habilitação; (vi) recursal; e (vii) homologação.
A divulgação do edital inaugura as fases da etapa externa. A sua maior novidade é a adoção do modelo “proposta-habilitação” como uma regra geral. Incorporando a experiência positiva da modalidade pregão em eficiência e celeridade, primeiro se apresentam as propostas (seguida de lances, quando o modo de disputa assim determinar). Após seu julgamento, verificam-se os documentos de habilitação.
Também foi adotada, à semelhança do pregão, a fase recursal única. O julgamento de recursos ocorre em um só momento, antes da homologação.
(1) Vide: https://www.cnm.org.br/index.php/comunicacao/noticias/relator-apresenta-proposta-da-nova-lei-de-licitacoes
(2) A Licitar, vale referir, é um dos portais privados que mais cedo realizou sua integração com o PNCP.
(3) JUSTEN FILHO, Marçal. Nova Lei de Licitações e seus Aspectos Positivos. Palestra IAP. Youtube, 05.06.2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mKt1kTLuObM>. Acesso em: 15 set. 2024.