Mesmo antes da publicação da Lei nº 14.133/2021 (NLLC), quando ela ainda era um projeto, tive a percepção de que a sua diferença fundamental em relação a então vigente Lei nº 8.666/1993 era a possibilidade de, quase 30 anos depois, migrar para uma lei dos novos tempos.
O mundo analógico do início da década de 1990, afinal, era muito diferente tecnologicamente do mundo digital do início desta década. Não por outro motivo, foi dentro da Confederação Nacional de Municípios (CNM), em um grupo de trabalho que tive a honra de coordenar, que surgiu a primeira ideia de criação de um sistema de contratações eletrônicas que unificasse as licitações e contratações do país. Aquilo foi a semente da alteração que entendo mais relevante no projeto de lei. Na evolução do processo legislativo, aquele sistema originalmente pensado na CNM passou por modificações e acabou se consolidando com o nome e formato pelo qual hoje o conhecemos: o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
Assim, o PNCP nasceu como uma porta de saída das licitações públicas analógicas e uma porta de entrada das licitações públicas digitais. Como já afirmamos em outro lugar: “Sem ele [PNCP], ousa-se acreditar que não faria sentido a edição de uma nova lei, bastando uma reforma, ainda que ampla, na lei vigente.”(1) Isso ao menos em teoria, já que sua efetivação, como tudo que ocorre com a Administração Pública, depende da boa vontade de diversos atores. Neste caso, em especial, agentes públicos, licitantes e sociedade.
Para aqueles que não estão familiarizados com o PNCP, é importante atentar que, conforme diagramado pelo art. 174, ele possui duas grandes funções: uma, de divulgação centralizada dos atos do processo licitatório e de contratação (inciso I), em caráter obrigatório; outra, de realização propriamente dos processos licitatórios e contratações pelos entes federados dentro do Portal (inciso II), em caráter facultativo. Essa última não está, até a data de hoje, habilitada. E, para ser franco, não há perspectiva de que tal venha ocorrer, mesmo em médio prazo, dadas diversas dificuldades práticas, dentre as quais a falta de orçamento autônomo do Portal.
Isso entendido, pode-se afirmar que o artigo 54 da NLLC é uma infeliz derrota da percepção relatada acima. Dito de outro modo, este artigo parece funcionar como uma espécie de “mito do eterno retorno”, o qual puxa a legislação de volta para aquele mundo analógico que pretendia abandonar. Vale a transcrição do dispositivo abaixo para, em ato contínuo, explicar o porquê desta afirmação:
Art. 54. A publicidade do edital de licitação será realizada mediante divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
§ 1º (VETADO).
§ 1º Sem prejuízo do disposto no caput, é obrigatória a publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação. (Promulgação partes vetadas)
§ 2º É facultada a divulgação adicional e a manutenção do inteiro teor do edital e de seus anexos em sítio eletrônico oficial do ente federativo do órgão ou entidade responsável pela licitação ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, admitida, ainda, a divulgação direta a interessados devidamente cadastrados para esse fim.
§ 3º Após a homologação do processo licitatório, serão disponibilizados no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e, se o órgão ou entidade responsável pela licitação entender cabível, também no sítio referido no § 2º deste artigo, os documentos elaborados na fase preparatória que porventura não tenham integrado o edital e seus anexos.
O caput do art. 54 é indicativo daquela primeira função referida do PNCP, de publicizar os editais de licitação e todos os seus anexos. Sem exageros, trata-se de um marco da concretização do princípio da publicidade no país: determinar que editais de licitações, antes dispersos em diários oficiais e em páginas de jornais (usualmente impressos), concentrem-se em um único endereço eletrônico. Isso permite o acesso à informação sobre as futuras contratações públicas. Por quem? Qualquer interessado. Onde? De qualquer lugar, bastando alguns cliques do computador ou alguns toques em um dispositivo eletrônico (celular, tablet etc.). Mais: esse acesso é gratuito para quem busca a informação – ao contrário, por exemplo, da necessidade de compra de um jornal – e gratuito para o órgão público que divulga a informação – ao contrário do que ocorre com a publicação em diário ou em jornais, que envolvem custos muitas vezes elevados. Ou seja, além da concretização máxima do princípio da publicidade, a novidade promove uma concretização máxima também do princípio da eficiência.
A regra da publicação do edital e dos seus anexos no PNCP, portanto, nesse novo modelo de processo licitatório digital, é “bastante em si” para o seu desiderato de ampliar o acesso à informação. Utiliza-se, aqui, a precisa expressão de Pontes de Miranda, criada no contexto da aplicabilidade das regras constitucionais: “quando uma regra se basta, por si mesma, para a sua incidência, diz-se bastante em si, self executing, self acting, self enforcing.”(2) A regra do caput, de fato, se basta por si mesma para a concretização do princípio da publicidade, e o faz com a maior eficiência, subtraindo os custos daquilo que era oneroso aos cofres públicos. Isso, em especial, considerando ainda a faculdade de o órgão ou entidade divulgar e manter os documentos em sítio eletrônico oficial, adicionalmente ao PNCP, conforme disposto no parágrafo segundo. Nesse caso, garante-se a publicidade no plano universal (o “todo” dos órgãos e entidades) e no plano particular (a “parte” do respectivo órgão ou entidade). Fazer mais pela publicidade é prescindível.
Por essa razão, a Presidência da República, em boa hora, vetou o parágrafo primeiro do artigo, que determina a obrigatoriedade de publicação do extrato do edital em Diário Oficial bem como – assim mesmo, em conjunção coordenada aditiva – em jornal diário de grande circulação. Na mensagem do acertado veto, caracterizava-se a desnecessidade de outra publicação para além daquela no PNCP e mesmo a antieconomicidade do dispositivo.
Ocorre que, por vezes, o princípio da proibição de retrocesso é ignorado, mesmo pelos Poderes da República. E isso ocorreu com os parágrafos do art. 54 pelo nosso Parlamento. Sem qualquer explicação plausível senão a força e influência dos grupos de comunicação do país, que possuem portentosas receitas com a publicização desses atos em seus jornais, o Poder Legislativo derrubou o veto da Presidência da República. Assim fazendo, tornou aquele redundante, desnecessário e antieconômico parágrafo primeiro um texto redivivo de nosso ordenamento jurídico.
Esse dispositivo é, à toda evidência, inconstitucional. O principal fundamento dessa inconstitucionalidade é o de que o dispositivo ofende o princípio da proporcionalidade, a partir do exame técnico de seus subprincípios.
Com efeito, o parágrafo primeiro, ainda que passe pelo exame da adequação (um maior acesso à informação é obtido, em tese, com a sua publicação em diários oficiais e jornais, o que em si é discutível, a considerar o número decrescente de pessoas que leem jornais impressos no mundo e no país), certamente não passa pelo exame da necessidade (o meio eleito – de publicação em PNCP e sítio eletrônico oficial – supre a concretização do acesso) e da proporcionalidade em sentido estrito (essas publicações adicionais geram custos que não se justificam à concretização do direito). Essa linha de argumentação pode ser feita em analogia com o famoso leading case do STF em que se julgou inconstitucional lei paranaense que determinava presença dos consumidores nas pesagens de botijões de gás.(3) Neste caso, a inconstitucionalidade decorre da redundância do dispositivo para a proteção do direito de acesso à informação, por onerar os cofres públicos e, também, por proteção ao meio ambiente, uma vez que a ideia de sustentabilidade exige a diminuição do uso de papel.
Até o momento em que se escreve este artigo, não se tem a notícia de que algum dos legitimados ao controle concentrado de constitucionalidade tenha suscitado a inconstitucionalidade do dispositivo junto ao STF. Mas deveria. E logo. Outra solução não se vislumbra a um dispositivo inexplicável. Inexplicável, ao menos, por razões jurídicas.
(1): HAEBERLIN, Mártin e PASQUALINI, Alexandre. Edital e Apresentação de Propostas – Comentários aos Artigos 53 ao 58 da Lei nº 14.133/2021. In: ROCHA, Wesley et al (coord.). A Nova Lei de Licitações. São Paulo: Almedina, 2021, p. 209.
(2): MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. São Paulo: Max Limonad, 1953, p. 148.
(3): STF. Tribunal Pleno. ADI nº 855. Relator Min. Octavio Gallotti. Relator para acórdão Min. Gilmar Mendes. DJe 27.03.2009.